segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Uma maçã para o professor.






Seguinte é esse: eu sou professora, né? Hoje recebi uma porrada de mensagens (GRATA A TOD@S!). Carinho de tudo quanto é lado. É massa. Ainda que afastada da sala de aula, o ego fica massageado quando uma criaturinha recente ou de outros carnavais se lembra de você.
Sobre ser professora, um caos em minha cabeça. Não quero mais, embora saiba das saudades e dos méritos que esta profissão me tatuou. Eu fui ser professora porque gostava de ler. E, em sala, sempre gostei de pensar que havia um horizonte beeem além daquele quadro branco ou negro. Porque o conteúdo mais importante NÃO É o do livro.
Eu acredito nessa utopia de relações humanas mais justas; de conhecimento partilhado; de empoderamento das classes populares; de intervenção social. Para que serve um aluno sem luz? São estudantes os que tive ao meu lado, me chateando, me entediando, me descontrolando e, acima de tudo, em um misto legítimo de paixão e indiferença,  me desafiando a entender que nem toda gente é igual.
Estes meninos e meninas que estudaram comigo me mostraram de duzentas mil formas o que é a diversidade política-cultural-religiosa-sexual e, além disso, qual o papel da educação formal nesse troço que chamamos sociedade.
Eu não acredito nessa escola que ou adestra meninos para o ENEM ou mantém meninos recebendo a bolsa-família. Escola tinha que ser sinônimo de pesquisa, tinha que permitir o acesso ao conhecimento sistematizado e tinha que produzir conhecimento.
Não é possível que esses garot@s saibam tanto de sexo, internet, política, música, preconceito, futebol, sentimentos e que não consigam transformar isso tudo em uma reflexão/ intervenção sobre as opções do mercado de trabalho, a desigualdade social e racial brasileira ou os prejuízos econômicos e ambientais do sistema capitalista, por exemplo.  
Lendo agora fica parecendo que quero formar militantes esquerdistas. Mentira. Não quero formar ninguém e "esquerda partidária" eu já nem sei o que significa. Quero informar, isso sim. E quero ser informada também. Saber quem são estes seres que ora brilham de entusiasmo, ora afiam lâminas de descaso. É. É isso. E isso vale tanto para os estudantes quanto para os professores, afinal, estou falando é de criaturas que não seguem o script do nascer, crescer, reproduzir-se (ou não!) e morrer. Gente cria, né? Além de crer, inventa. É por isso que ainda estou (estamos?) aqui: caçando outras formas de estudar – pesquisar, aprender, ler, discutir, odiar, amar – a vida.
Às minhas colegas e “colegos” de profissão, um salve.
Aos dirigentes governamentais, uma banana.
Aos estudantes (morro dizendo isso, a-luno é sem luz!!!), um vínculo.
À sociedade, please, presta mais atenção na escola, seja ela particular ou pública. Poucos professores e poucos estudantes querem estar lá de verdade.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

E que gosto têm os sentimentos?

   


Tem gente que funciona pelo cheiro. São aqueles que  impregnam de fragâncias o cotidiano: "Poxa, Lapidus me lembra tanto minha irmã!"; "Ah, a dama-da-noite é a cara de minha mãe!"; "Este cheiro de maconha...hum...tem vagabundo por aqui." Para outros, a senha é a visão. Lugares, pessoas e cores são facilmente codificados. "Rapaz, não posso ver Fulano sem lembrar de Beltrano!"; "Olhe, qunado vejo o mar, só lembro daquele dia, da gente."; "Vixe, nem quero ver este vestido. Só me lembra aquele tempo."Há os que precisam tocar. São os que cresceram, mas continuam dizendo "Deixa eu ver!" ao mesmo tempo em que estendem as mãos em direção ao objeto do desejo. Basta sentir a aspereza do velcro para recordar daquele incidente da sexta série, na frente de todos os colegas, naquela sala ginasial.
   Eu me seduzo pelo ouvido (e qual mulher estaria imune a este canal de paixões?). Minha premissa é esta: fica mais fácil viver se me visto de trilhas sonoras. Por exemplo:"Bom dia, sua senha e RG, por favor."; "Você chegou atrasada, estava marcada para 09:40 e chegou 09:48."; "Vocês tem que entender que o INSS faz tudo baseado em leis. O resultado não sai da cabeça do médico, é a lei que diz o que deve ser feito." Quando ouço estes comandos na perícia médica, não dá outra, a lembrança é de Música Urbana, da Legião: "Entendo seu problema, mas não posso resolver. É contra o regulamento, está bem aqui, pode ver.". Por outro lado, não tem como ouvir Pé com pé", do grupo Palavra Cantada sem lembrar de minha sobrinha Laura e de minha amiga Olívia, duas plenas crianças.
     Falta o paladar, né? Como são as pessoas que degustam a vida? Bem, sempre acreditei que a minha memória afetiva fosse essencialmente musical, mas venho sendo visitada por algumas insistentes metáforas culinárias. "Geleia de uva tem gosto daquele abraço fraterno em um fim de tarde grapiúna."; "Molho de pimenta tem gosto dos almoços de domingo, na casa de tia Maria.". "Vinho? Ai... vinho tem gosto de comunhão lenta, bem cuidada, seja com Cristo, seja com outrem."; "Chocolate tem gosto daqueles domingos com serotonina inexisente." e assim por diante.
    Essa queda pelos sabores tem me surpreendido porque sempre fui de publicar o meu distanciamento culinário. Na verdade, eu tenho pavor de cozinha, sempre acho que as minhas experiências estão aquém do sabor ideal, afinal, já fiz bolo de chocolate com pó de guaraná pensando que era Nescau, enfim...toooodo um alheamento. Receio a cozinha como receio a dança. Ambas as atividades exigem um posicionamento corporal. Acho que daí advém o meu medo. Não é fácil compreender e vivenciar esta interligação mente-corpo. Platão deixou marcas e eu temo responder: que sabor tem as atuais experiências vivenciadas no período prozac? Recentemente a renovação da minha licença médica foi novamente negada e, embora o psiquiatra, a psicóloga, o médico do trabalho e o psicólogo do CEREST digam o contrário, de acordo com o julgamento das regras previdenciárias, já estou apta ao trabalho docente.
    Ok.  É muito difícil se ver confrontada com um negócio tão particular como a sua saúde mental. A perícia médica do INSS tem um clima intimidador. Sabe o medo de você estar mentindo para si mesmo? Eu confesso: tive que fazer um esforço para entender que ali, orientando aquela decisão, estava A Lei. Dura lex, sed lex, né? Tentava me convencer disso quando a doutora resolveu sair do script e me perguntou: "Mas, se há tantos problemas em ser professora,  por que você escolheu essa profissão?" Puta-que-pariu. Me perdoem a falta de compostura linguística, mas...foi um processo. Me diga, como responder a esta pergunta sem parecer insana? Porque é isso. Para ser gente hoje é preciso ser iron woman. É foda entender que sua sensibilidade está sendo compreendida como fragilidade ou desequilíbrio. Aliás, não é foda. Não me dá prazer nenhum verificar isso.
     Acho que a doutora não se deu conta, mas a sua pergunta foi certinho na minha ferida."Aquele gosto amargo ficou na minha boca por mais tempo e (...) fez casa nos meus braços". É, Renato Russo sabia das coisas Afinal, qual o problema em ser professora, Larissa? Bem, primeiro preciso dizer que, quando criança, eu não queria ser professora. Queria algo bem mirabolante, como ser cientista ou astronauta. Depois, na adolescência, queria ser jornalista. O fato é que é o meu desejo era trabalhar com informação e conhecimento, pois sempre gostei de ler e de refletir sobre o mundo.  Quando fui fazer o vestibular, "soube" que precisava fazer um curso noturno e que me garantisse emprego imediato. Conjugando estes critérios com o gosto pela leitura, acabei optando por Letras. Não quero posar aqui de "A ressentida do Jaçanã".  Sabe aquele povo mal-amado que usa a internet (face, blogs e afins) para dizer como o mundo é feio, triste e injusto? Às vezes eu sou assim, mas quase sempre busco coletivizar as queixas, afinal não quero ser a "pobre-mulher-que-não-cresceu-e-é-incompreendida. Enfim, não sou Paulo Coelho nem aqui na China, reconheço as complexidades, Joyce em um tuíte, jamé!
     Larissa-professora. R.I.P.? Não. Eu ainda sou professora. Esta noite, como em muitas outras, sonhei com a sala de aula, com a rotina do ensino-aprendizagem, com o riso e com o choro. E na minha boca o gosto está instável. Estou sem salário do município há dois meses, porque o INSS me mandou de volta e eu não me mandei. A prefeitura não pode me conceder desvio de função porque o médico do trabalho diz que estou inapta. Enfim. Como é não ter salário? Depois de tanto tempo sendo funcionária-padrão, eu já não sabia quão desconcertante é não poder participar das farras coletivas ou não poder pagar um curso de balé para a sobrinha ou não poder pagar o condomínio e etc e etc. Tenho andado muito. Tanto pra vender cocada, quanto pra economizar o dinheiro do coletivo. Tem dias em que desejo uma revista, um sorvete, coisas simples assim e me vejo visitada por "um beijo travoso de umbu cajá", meu amigo Alceu.
     E o que dinheiro tem a ver com sabor? É possível comprar o gosto dos sentimentos? Eu sou professora. Ainda. Mas quero estar na fase de transição, sabe? Vendo cocada e nem sei cozinhar, mas vejo e admiro minha mãe misturando tudo quanto é sentido diante do caldeirão de doce. Não sei se vou sair dessa realizando peripécias culinárias. Mas sei que quero sair dessa. Gengibre e cacau com pimenta são meus sabores prediletos.Ardidos. Marcantes. Eu gosto. Ficar sem salário, me preparar para deixar de ser professora. Sai rasgando. Medo deve ter sabor de jiló amargo. Mas felicidade, essa coisa tão abstrata quanto necessária, deve ter gosto de queijo macio. Eu não quero ser adolescente e acreditar no "pra sempre" mas eu quero ser uma profissional que acredita no que faz. Mesmo que seja só no momento presente. Mesmo que depois eu tenha que voltar atrás e dizer: "Aiiiiiiii, como viver sem a escola?". Mesmo assim. Eu quero tentar. Esperança, eu sei. Tem gosto de pêtit gateau. O bichinho é caro, nem todo mundo sabe fazer gostoso, mas, quando bem preparado, te dá um prazer sem nome. Eu quero isso. O sabor de uma vida com pazeres e dores ainda virgens. Vou, assim, batizando-os enquanto me batizo e aprendo. Um dia, a cozinhar. O outro, a dançar. Quem sabe hoje?